segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
sobrevida
O prenúncio do pior já havia sido alertado. O pai, trêmulo e angustiado, subia as escadas do velho apartamento na espera de reencontrar seu filho depois de um ostracismo de seis meses. No último degrau, uma engolida a seco arranhava a garganta, ensaiando uma rouquidão nervosa e tensa. Eram oito da noite. O senhor estava inerte em frente à porta. Faltava-lhe coragem para erguer a mão e tocar a campainha. Um suspiro pesado tira-lhe momentaneamente a dor do prelúdio de uma má notícia. Sobe-lhe o sangue. O ressentimento revisita sua consciência.
- Filho bastardo! Fode a nossa vida e agora vem tripudiar pra cima de mim – exclamou para si mesmo.
A raiva já alterava sua cor pálida. A aparência serena e pacata convertia-se em uma expressão enrugada de ódio.
- Miserável, filho de uma puta. Deve estar fudido e agora vai pedir dinheiro. Como se não bastasse ter extorquido tua mãe até a morte - suspirou em pensamento.
Era chegada a hora de enfrentar a situação. Levantou a cabeça e, sem bater, colocou a mão na maçaneta para adentrar de forma impositiva. O primeiro susto: a porta abre sorrateiramente.
- Estava te esperando – balbuciou o filho.
- Vem, entra!
Ao chegar à sala, uma forte dor de estômago contaminou o velho homem . Naquele ambiente, tudo estava sujo e desorganizado. No chão da cozinha, baratas se alimentavam de um vômito antigo.
- Que merda é esta? Isto é um cativeiro? – esbravejou o pai.
- Sim, esta merda é o meu cativeiro. É tudo o que eu consegui herdar da tua vidinha medíocre.
- Tua mãe tinha razão. Eu deveria ter vendido esse pardieiro e te internar até tu virares gente!
O pai começara a ficar impaciente. Percebera que aquele encontro não poderia render qualquer tipo de reconciliação. E completou:
- Desembucha, guri. Por que me chamaste aqui?
O garoto ficou mudo. O tempo suficiente para o senhor perceber a magreza e a palidez do seu único filho.
- Fala, porra! – exclamou, desta vez um tom ressentido, já abaixando a voz.
- Eu estou morrendo! – disse o rapaz.
- Há dois meses eu descobri um câncer, o mesmo que levou a mãe. Está tudo espalhado. Não tem mais nada a fazer – completou.
O pai recuou dois passos. Toda a dor da recente perda da esposa veio à tona. Uma mistura de compaixão com ódio se alastrou no corpo em metástase.
- É isso que dá se meter com drogas. Agora vai ter que lutar pra viver. Eu te disse que...
- Disse o quê? - Ameaçou o filho.
- A vida inteira tu não me disseste nada. E não venha agora me aporrinhar com o seu palavreado pedante.
A distância, mesmo a física, de ambos aumentara. O pai, desesperado, segura o braço do rapaz.
- Vamos pra minha casa, filho. Temos que tratar essa porra!
- Tratar o quê? Não ouviu? Tá tudo espalhado. Acabou. Agora eu só quero ficar em paz!
- Escuta aqui, guri! Você vai se medicar, seu merda! Já não basta a tua mãe, que transformou a minha vida num inferno até o dia em que morreu?
O filho responde com rancor:
- Ela morreu por tua causa, filho da puta. Ela se apegou ao câncer para se livrar de ti.
Tomado pela raiva, o homem segura o filho pelo colarinho e o prensa na parede.
- Então morre. Morre sozinho. Sustente essa chaga aqui neste apartamento imundo.
Indignado, o rapaz disparou:
- Eu irei sim. Aliás, já estou morrendo. Cada dia padece um pouco mais de mim.
- Esses tumores já são meus, todos meus. E quero eles comigo até que se multipliquem e me devorem.
E completou, com os olhos marejados:
- E tem mais, “pai”, logo eu vou me transformar em um tumor, assim como a minha mãe. E terei prazer de me reproduzir dentro de ti e te proporcionar um prazer vicejante. Irei te fazer vomitar todas as merdas que fizeste em vida...
Irado, o pai dá um soco no estômago do filho que, impetuosamente, expele da boca um líquido marrom. O rapaz, caído no chão, começa a rir em um ritmo descompassado.
- Está plantado o teu destino, papai. Sua alma agora deve estar lavada!
Indignado, o pai abandona o apartamento para nunca mais voltar. Ao descer as escadas, outra forte dor no estômago castiga seu corpo. Era o início de um ciclo terminal, que, dias mais tarde, seria diagnosticado clinicamente.
Ao saber de seu prognóstico, um câncer em estágio avançado, o pai sentiu-se aliviado, como se fosse agraciado por uma autoindulgência.
O filho, já fatigado pelas complicações de sua doença, tentou voltar atrás e iniciar um tratamento que prolongasse, nem que fosse por dias, sua sobrevida. Uma nova vida.
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Li e gostei.
ResponderExcluirparabens pelo belo texto.
abração
Que horror!!! :P
ResponderExcluiraFE, QUE HORROR!!!!
ResponderExcluirnossa, muito bom o seu conto. além das maravilhas do seu blog. já te sigo.
ResponderExcluirabraço!
Você deveria escrever um livro, tens muito talento para isso. Alias, um não, vários livros.
ResponderExcluirduk7
ResponderExcluirJoão! Acho que foi a escolha das palavras, do ritmo, da rapidez das idéias metralhando e mostrando a cena... imaginei tudo! Muito humano, muito humano... complicado, difícil, mas retrato psicológico em forma de relacionamento que busca equilíbrio para a vida... muito louco, gostei muito. O Anônimo 7 tem razão: você deveria publicar. A força em palavras está muito boa. Acho que um curta é bom, mas adorei as palavras. Enfim, é uma observação carinhosa! Abração!!! Amauri Marques
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