quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Partir

Meu medo não é de morrer.
É de não viver.

Literal

O sofrimento 
me faz 
poeta.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Mais do mesmo


A rotina nos envelhece. O mesmo itinerário, as mesmas pessoas, o mesmo ofício, o mesmo, a mesmice. A rotina engorda, emburrece, conforma e cega. E ainda por cima é traiçoeira e nos faz crer numa segurança falsa. É por isso que muitas pessoas entram em parafuso quando são demitidas ou quando o namoro acaba. Por puro e simples medo de sair da rotina. Mesmo que o trabalho estivesse uma merda e o namoro por um fio. O cotidiano é um saco. Necessário, mas um saco. Por isso, faça planos para fugir do senso comum. Mude o trajeto por um dia, vá num lugar improvável, fale alguma coisa que impressione alguém. Positivamente, de preferência. Não deixe que a correnteza te leve submisso. Trapaceie. Segure-se num galho ou desvie do curso. Você até pode despencar de uma catarata, mas não morre míope. Nem de tédio.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A crônica dos desejos adormecidos

 Um dia eu vou acordar, olhar no espelho e não querer mudar nada em mim. Largar mão da vaidade e esperar das pessoas apenas o que elas podem dar. Entender que a felicidade que eu tanto busco não vai chegar por inteiro, mas sim dividida em pequenas parcelas. Vou me arrepender de guardar elogios, de omitir sentimentos e de dizer o quanto as pessoas são importantes.

Uma hora vou olhar pra trás e ver que eu poderia ter sido menos intransigente e mais prestativo. Que deveria ter mergulhado muito mais nos meus conceitos do que nos preconceitos. Que o futuro é muito mais do presente do que do pretérito.

Em algum momento vou entender que viver de dieta é inútil e que o nosso corpo despenca independente da nossa vontade. Que a calvície é hereditária e irreversível. E que o dinheiro gasto em um implante capilar pode ser investido em uma viagem e muitas histórias.

Hora dessas vou compreender que o tempo não volta. E que a vida poderia me levar para lugares fascinantes se eu simplesmente deixasse a correnteza seguir o seu curso. Um dia eu vou acordar pra tudo isso. Um dia.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

sobrevida



O prenúncio do pior já havia sido alertado. O pai, trêmulo e angustiado, subia as escadas do velho apartamento na espera de reencontrar seu filho depois de um ostracismo de seis meses. No último degrau, uma engolida a seco arranhava a garganta, ensaiando uma rouquidão nervosa e tensa. Eram oito da noite. O senhor estava inerte em frente à porta. Faltava-lhe coragem para erguer a mão e tocar a campainha. Um suspiro pesado tira-lhe momentaneamente a dor do prelúdio de uma má notícia. Sobe-lhe o sangue. O ressentimento revisita sua consciência.

- Filho bastardo! Fode a nossa vida e agora vem tripudiar pra cima de mim – exclamou para si mesmo.

A raiva já alterava sua cor pálida. A aparência serena e pacata convertia-se em uma expressão enrugada de ódio.

- Miserável, filho de uma puta. Deve estar fudido e agora vai pedir dinheiro. Como se não bastasse ter extorquido tua mãe até a morte - suspirou em pensamento.

Era chegada a hora de enfrentar a situação. Levantou a cabeça e, sem bater, colocou a mão na maçaneta para adentrar de forma impositiva. O primeiro susto: a porta abre sorrateiramente.
- Estava te esperando – balbuciou o filho.
- Vem, entra!

Ao chegar à sala, uma forte dor de estômago contaminou o velho homem . Naquele ambiente, tudo estava sujo e desorganizado. No chão da cozinha, baratas se alimentavam de um vômito antigo.

- Que merda é esta? Isto é um cativeiro? – esbravejou o pai.
- Sim, esta merda é o meu cativeiro. É tudo o que eu consegui herdar da tua vidinha medíocre.
- Tua mãe tinha razão. Eu deveria ter vendido esse pardieiro e te internar até tu virares gente!

O pai começara a ficar impaciente. Percebera que aquele encontro não poderia render qualquer tipo de reconciliação. E completou:
- Desembucha, guri. Por que me chamaste aqui?

O garoto ficou mudo. O tempo suficiente para o senhor perceber a magreza e a palidez do seu único filho.

- Fala, porra! – exclamou, desta vez um tom ressentido, já abaixando a voz.
- Eu estou morrendo! – disse o rapaz.
- Há dois meses eu descobri um câncer, o mesmo que levou a mãe. Está tudo espalhado. Não tem mais nada a fazer – completou.

O pai recuou dois passos. Toda a dor da recente perda da esposa veio à tona. Uma mistura de compaixão com ódio se alastrou no corpo em metástase.

- É isso que dá se meter com drogas. Agora vai ter que lutar pra viver. Eu te disse que...
- Disse o quê? - Ameaçou o filho.
- A vida inteira tu não me disseste nada. E não venha agora me aporrinhar com o seu palavreado pedante.

A distância, mesmo a física, de ambos aumentara. O pai, desesperado, segura o braço do rapaz.

- Vamos pra minha casa, filho. Temos que tratar essa porra!
- Tratar o quê? Não ouviu? Tá tudo espalhado. Acabou. Agora eu só quero ficar em paz!
- Escuta aqui, guri! Você vai se medicar, seu merda! Já não basta a tua mãe, que transformou a minha vida num inferno até o dia em que morreu?

O filho responde com rancor:
- Ela morreu por tua causa, filho da puta. Ela se apegou ao câncer para se livrar de ti.

Tomado pela raiva, o homem segura o filho pelo colarinho e o prensa na parede.

- Então morre. Morre sozinho. Sustente essa chaga aqui neste apartamento imundo.

Indignado, o rapaz disparou:
- Eu irei sim. Aliás, já estou morrendo. Cada dia padece um pouco mais de mim.
- Esses tumores já são meus, todos meus. E quero eles comigo até que se multipliquem e me devorem.

E completou, com os olhos marejados:
- E tem mais, “pai”, logo eu vou me transformar em um tumor, assim como a minha mãe. E terei prazer de me reproduzir dentro de ti e te proporcionar um prazer vicejante. Irei te fazer vomitar todas as merdas que fizeste em vida...

Irado, o pai dá um soco no estômago do filho que, impetuosamente, expele da boca um líquido marrom. O rapaz, caído no chão, começa a rir em um ritmo descompassado.
- Está plantado o teu destino, papai. Sua alma agora deve estar lavada!

Indignado, o pai abandona o apartamento para nunca mais voltar. Ao descer as escadas, outra forte dor no estômago castiga seu corpo. Era o início de um ciclo terminal, que, dias mais tarde, seria diagnosticado clinicamente.

Ao saber de seu prognóstico, um câncer em estágio avançado, o pai sentiu-se aliviado, como se fosse agraciado por uma autoindulgência.

O filho, já fatigado pelas complicações de sua doença, tentou voltar atrás e iniciar um tratamento que prolongasse, nem que fosse por dias, sua sobrevida. Uma nova vida.