quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Depois das sete


Ele é um redator normal. Tão comum quanto um pedaço de carne de segunda no açougue. Apenas mais um insignificante Severino com a sua rotina medíocre de 40 horas semanais. Olha para o relógio. Dez para as sete da noite. Fim do expediente e de seu langanho disfarce profissional.

Levanta-se, bate o ponto, finda a labuta e entra no carro. Ele e o breve silêncio, broncamente interrompido por um motor rodado pelos calos das estradas. Talvez esse seja o único ponto de afinidade que o redator tem com o seu meio de transporte: os pneus carecas, já desgastados de tanto vai-vem que não o leva para lugar algum.

Chega a casa. Sua família não está lá. Seus filhos não nasceram.

A luz se apagou, a festa acabou e as pessoas se foram. E agora, João?

Créditos finais

O término de qualquer relação revela uma interessante trama. Um enredo que precisa de um final previsível, mas ainda assim surpreendente. Que convença a todos que estão em volta. Aquele roteiro em que o bem sai vitorioso. O mal, punido ou mesmo perdoado. Mas sozinho. Faz parte do jogo cênico. É sempre assim. Alguém tem que perder.

Pôr fim a uma história exige conflitos e resoluções de nós. Deve parecer crível a quem assiste. Porque sim, todos nós devemos ao público satisfação sobre a nossa vida particular. Quem vai ser o vilão? E a vítima? Qual será o desfecho? E o motivo? E o gran finale?

Toda história tem seu fim. E enquanto sobem os créditos, é comum alguém ficar sabendo de um nó que não ficou bem desatado. Uma trama paralela que não foi muito bem explorada. Aos espectadores, entretanto, pouco importa. O filme acabou. O herói, depois de muito sofrer, logra a prosperidade de um novo amor. Logo tem outra produção em cartaz. Com seu começo, meio e fim. Eterno enquanto dure. Porque o show tem que continuar.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Azul


Meu mundo é do tamanho da minha gaiola.
Minha zona de conforto.
Aqui tenho comida, sombra e água fresca.
Proteção também. Por essas grades predador nenhum entra.

Até que você invadiu o meu espaço e abriu a porta do meu claustro.
Quanto atrevimento!
E ainda me incitou a voar.
Mas pra que bater asas? Arriscar-me em ares desconhecidos?
Aqui tenho a previsibilidade. A certeza de que tudo vai estar no seu devido lugar.
Pra que me exilar do criadouro? Pra que abdicar de tudo isso?

Assim mesmo tu me pegaste e me puseste para fora. Como um corpo expulso do ventre. Frágil e desprotegido.
Jogaste-me em outro mundo, maior e sem limites.
Aos poucos bati asas. E alcei meu primeiro voo ao desconhecido.
Acuado, planei na imensidão. Um prazer vicejante invadiu o meu corpo. Era o vento me acariciando. A liberdade de uma nova existência. Celeste, alva, alvissareira.

Vivo o improvável, o desconhecido. O claro e o escuro. O todo e o nada.
Minhas extensões mudaram e minhas asas ganharam imponência.
Não sei aonde vou e nem onde vou chegar.
Nem sei mais o que sou.
Sei que meu mundo mudou.
E tu me deste a liberdade.